Qual é a importância de promovermos escutas de crianças e adolescentes?

Rede Conhecimento Social
5 min readAug 4, 2020

No mês de julho, celebramos os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instrumento fundamental para a garantia dos direitos da infância e da adolescência no Brasil.

Dentre os avanços das últimas três décadas, presenciamos a construção e o fortalecimento das redes de proteção que zelam pelos direitos específicos das crianças e adolescentes e buscam superar as desigualdades e vulnerabilidades que desafiam a proteção integral estabelecida pelo ECA.

Porém, ainda há muito a avançar na garantia desses direitos. E ao consideramos as diferentes realidades vivenciadas em nosso país, entendemos que mesmo que crianças e adolescentes não possam participar diretamente da política institucional, é de extrema relevância promover espaços de protagonismo, para que eles contribuam com suas perspectivas sobre os assuntos que os impactam diretamente.

Pensando nisso, queremos compartilhar nossas percepções sobre o potencial da escuta a partir das experiências com a metodologia Olhar das Crianças, que foi desenvolvida com a intenção de promover uma perspectiva para além dos dados quantitativos e que a partir do Photovoice, um conceito de pesquisa-ação que mescla técnicas fotográficas, etnográficas e semióticas, estimula que pessoas realizem registros fotográficos e reflexões sobre suas realidades.

O processo é realizado por meio de uma oficina, com crianças e seus responsáveis e tem como objetivo não só o processo de escuta, mas também a promoção de espaço de diálogo entre pais e filhos, ou adultos e crianças, e a sensibilização deles sobre a importância da participação cidadã e crítica desde a infância.

A metodologia tem sido implementada em diversos contextos, e algumas das fotografias produzidas pelas crianças integram o Observatório da Primeira Infância, trazendo para a plataforma um espaço de voz para crianças participarem da avaliação do que as cidades oferecem ou deixam de oferecer para elas.

Oficina Olhar das Crianças — Cami Onuki

Quando consideramos o desenvolvimento e o monitoramento das políticas públicas sobre a infância, facilmente vamos pensar em adultos opinando sobre o tema, sejam eles do poder público, de organizações da sociedade civil ou especialistas sobre o tema. Mas, por que não crianças?

Afinal, como é bem pontuado pela Luisa Riekes, nossa colaboradora independente e uma das responsáveis pela realização das oficinas Olhar das Crianças, “se queremos reconhecer as crianças e os adolescentes como cidadãos com direito pleno à educação, alimentação e convivência familiar e comunitária, entre outros pontos, é fundamental que elas façam parte da parcela escutada para a execução de políticas públicas”, pois são eles que vivem, na prática, os desdobramentos dessas decisões que, muitas das vezes, acabam não levando em consideração suas perspectivas.

Sendo assim, além de promover o protagonismo e a oportunidade de incidir politicamente, as escutas promovidas durante as atividades também são momentos de aprendizados para os adultos, mães, pais ou responsáveis que acompanham o processo; ao assumirem uma postura de apenas observar, o que pode ser bem desafiador.

Oficina Olhar das Crianças — Luisa Riekes

Afinal, para alguns é difícil acreditar que as pequenas e os pequenos terão uma opinião sobre os espaços públicos que frequentam. Mas, durante as atividades que realizamos, nas quais as crianças são convidadas a registrarem por meio de fotografias o que gostam e o que não gostam na cidade, logo se percebe que elas se expressam muito bem! Da forma delas e em um outro ritmo que considera os pormenores que, muitas das vezes, passam desapercebidos pela maiorias de nós.

É o que a Harika Maia, nossa diretora de projeto, nos lembra “a metodologia Olhar das Crianças é um movimento descolonizador do olhar sobre as questões sociais e política. É perceber a potência da participação das crianças nos debates públicos para construirmos uma sociedade mais inclusiva, educadora e cidadã. Afinal, elas sabem o que as incomodam e sabem “palpitar” sobre isso!”.

E desse olhar cheio de simplicidade, nada escapa desde os lixos espalhados, os desníveis das ruas e as calçadas estreitas que são ocupadas pelos carros que dificultam que os espaços públicos sejam mais bem aproveitados por elas. Até o verde que toma conta das praças, as flores que enfeitam as casas e os coloridos dos grafittis que estimulam a imaginação e se ressignificam a partir da lente atenta da garotada. Exemplo disso é o relato muito significativo da Marisa Villi, nossa diretora executiva, “quando fizemos a primeira oficina de Olhar das Crianças, os pais acompanharam seus filhos na circulação pelo entorno da Vila Itororó, sob nossa orientação de estimularem as crianças a registrarem o que gostavam e não gostava na cidade dentro daquele percurso. Um pai indicou ao filho a tampa do bueiro, imaginando que o filho consideraria aquilo feio ou ruim, pois ali embaixo tem o esgoto, que é sujo; o filho, todo animado, tirou a foto da tampa do bueiro dizendo que gostava daquilo pois era uma mandala”.

Oficina Olhar das Crianças — Luisa Riekes

Ou seja, as experiências que tivemos até o momento com essa metodologia participativa, dentre outras, nos mostram que por mais que se coloque empenho, dificilmente os adultos vão notar o entorno, as ações ou as questões da mesma forma que as crianças e adolescentes, afinal, partimos de uma série de conceitos já construídos que nos impendem a mesma contemplação que a deles.

Por isso, acreditamos que é fundamental a criação de mais espaços de escutas sobre as infâncias e adolescências, que considerem as especificidades, repertórios, necessidades de cada faixa etária e as pluralidades vivenciadas em nosso país.

É muito importante ressaltarmos que muito já foi conquistado até o momento! Mas, será que podemos potencializar os avanços necessários ao contarmos com a visão das crianças e adolescentes? Afinal, eles têm o direito a se desenvolverem de forma plena e quem melhor do que eles para falar sobre suas realidades?

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Organização sem fins lucrativos que tem como missão promover a construção compartilhada de conhecimento conectando pessoas para gerar transformação.