Desafios de Mobilidade — Injustiças Estruturais

Rede Conhecimento Social
8 min readAug 8, 2023

No último dia 25 de julho de 2023, Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, a ReCoS divulgou um bate papo baseado nos dados da pesquisa Injustiças Estruturais entre Jovens na Cidade de São Paulo, desenvolvida em parceria com o Juventudes Potentes. Lorrana Silvano, assistente administrativa na ReCoS, mora em Poá, região do Alto Tietê; e Kika Ernane, analista de comunicação na ReCoS, vive na periferia de Osasco, divisa com Barueri, compartilharam sobre um dos desafios que mais impactam suas vidas, a mobilidade.

Segunda a plataforma Politize!, “mobilidade urbana é um conceito que pensa o deslocamento de modo a garantir que atividades sociais e econômicas ocorram nas cidades e arredores. Dessa forma, é natural pensar que ela está diretamente relacionada aos meios de transporte, individuais ou coletivos, e as vias de trânsito.”

Pessoas que moram em periferias enfrentam muitas barreiras para realizar seu deslocamento, especialmente, para conseguir chegar no trabalho e faculdade, para acessar atividades culturais, ou para circular pelas cidades.

Alguns dos dados da pesquisa Injustiças Estruturais entre Jovens na Cidade de São Paulo que foram debatidos por Lorrana e Kika, chamaram atenção por se conectarem com suas vivências:

40% de jovens responderam que moram na região mais periférica de seu bairro, áreas que frequentemente são mais residenciais e com menos comércio no entorno;

60% deles já se sentiram prejudicados por passarem muito tempo dentro do transporte público.

Outro dado trazido é que 42% das juventudes indicaram que levam mais de 1 hora para chegar no centro da cidade de São Paulo, que é onde estão as melhores vagas de emprego.

Essa experiência é compartilhada pela Lorrana, que hoje trabalha na região da Barra Funda: “É muito difícil para o jovem estar no trem 6h da manhã, porque na faculdade, no geral, as aulas começam 8h, isso se for de manhã. Ou precisar acordar cedo, 5h ou 5h30, para entrar no emprego 8h30. Considerando que o trem vai estar funcionando sem problemas, porque se estiver chovendo, ou qualquer outro imprevisto, vai demorar e você acaba se atrasando bastante. Uma rotina que é muito complicada e exaustiva.”

Kika também relata como ao morar em bairros muito distantes do centro, a condução não é tão farta e demora mais, já que tem menos oferta nas linhas. “É muito complicado, principalmente se você precisa trabalhar e estudar. Eu dormia na hora do almoço, por isso, tinha que comer rápido para descansar na hora do almoço, uma vez que era uma rotina muito pesada. Tanto que algumas vezes eu tinha que dormir duas ou três horas da manhã, para fazer trabalho.”, complementa Kika.

Acesso a oportunidades

Os desafios de mobilidade trazem um conjunto de limitações, relatados na pesquisa: como na maior parte dos casos o território onde residem não têm muitas oportunidades de emprego, geralmente, acabam trabalhando no comércio, ou em profissões não formais como, por exemplo, camelô e trancista. Isso significa que raramente atuam como CLT, ou trabalham de forma autônoma, mas sem uma formalização, como MEI.

“Então, é muito difícil você encontrar vagas de emprego em Poá, pois, é uma cidade muito pequena. E a maior parte dos empregos que encontramos são dessas profissões autônomas, ou no comércio mesmo. Para estudar na região que eu moro, Poá não tem faculdade. Agora estão surgindo faculdade EAD, mas na época que eu estudava também não tinha tanto acesso. Temos faculdades em Mogi das Cruzes que é uma cidade próxima, e Suzano que é uma cidade vizinha, lá também tem universidades. Além disso, não tinha tantas opções de curso, portanto, dependendo do curso que você pretende fazer precisa se deslocar mais.”, compartilhou Lorrana.

Desafios para qualificação

Uma experiência compartilhada pela Kika e pela Lorrana é a questão de que as oportunidades de estudo disponíveis mais próximas de onde moram nem sempre são reconhecidas, trazendo também dificuldades de alocação no mercado de trabalho.

“Outro fato muito importante, é que algumas faculdades não são tão reconhecidas, dito isso, quando íamos procurar emprego no centro de São Paulo, perguntavam onde você estudou? Quando você fala o nome da faculdade, as pessoas falam que não conhecem, isso acontece com frequência. Às vezes, dependendo do local não é tão importante, mas em outros lugares, é muito levado em consideração a universidade que você estuda.” relatou Lorrana.

“Assim como a Lorrana, eu falo a faculdade onde estudei e ninguém conhece, porque não é uma faculdade muito conhecida. Escolhi o curso baseado na proximidade da faculdade com a minha residência, então, eu não escolhi a faculdade que eu queria fazer, acabei fazendo a faculdade mais próxima da minha casa.” complementou Kika.

Trabalhar e estudar

Conciliar os estudos com o trabalho é um processo complexo nesse contexto. Kika Ernane explicou sobre sua experiência: “Precisei estudar a noite, pois, trabalhava durante o dia, em horário comercial. Pra gente que é da periferia e precisa trabalhar, dado que é o trabalho que mantém a gente na faculdade, porque a gente precisa de dinheiro para pagar as cópias, para comprar apostilhas, livros, pagar a passagem e a mensalidade. Eu tinha bolsa, mas apesar da bolsa ainda pagava mensalidade.”

“No meu caso, que estudei no período da manhã, saia da faculdade e ia trabalhar direto, porque o jovem precisa trabalhar, pois, é uma necessidade básica, para financiar os estudos e comprar coisas. No meu caso, eu trabalhava, eu precisei estagiar. Logo, você não tem tempo, tempo para praticar uma atividade física, para estudar, uma vez que não basta a gente assistir às aulas na faculdade, é preciso estudar. Em muitas oportunidades você sai mais cedo da aula para estudar as matérias, eu vivi isso durante os 5 anos da minha graduação.” explicou Lorrana Silvano.

Segurança e mobilidade

Muitas vezes as limitações de mobilidade trazem desafios adicionais, relacionados à segurança. Kika contou que em sua rotina nem sempre era possível não prejudicar os estudos para conseguir chegar em casa em um horário melhor. “Como eu sempre tinha que sair mais cedo da aula para não perder o ônibus, porque se eu perdesse o ônibus o próximo era quase uma hora esperando. Teve um dia que o professor implicou comigo, e falou ‘não vou deixar você sair da aula’, então, ele não deixou. Perdi o ônibus, fiquei no ponto vendo todas as pessoas indo embora, isso já era mais de 23h. A minha sorte foi que uma escola que ficava próxima liberava os alunos às 23h e eles começaram a chegar no ponto, senão fosse isso eu ia ficar sozinha. E a gente que é mulher temos outros problemas, pois, em determinados horários não conseguimos andar.”, contou Kika.

“Uma insegurança gigante! Nunca aconteceu comigo algo parecido, por sorte! Mas, com vários colegas meus. Também tinha professor que deixava para fazer chamada no último instante. Isso é muito ruim, não é porque você não quer assistir à aula, ou que você está desrespeitando o professor. Se você não sair, na verdade, vai acabar perdendo o ônibus, o transporte. Pensa se você perde o transporte não volta para casa.”, reagiu Lorrana.

Muitos jovens no decorrer da pesquisa sinalizaram a violência como uma preocupação, já que, apesar de se sentirem seguros no seu bairro, por conhecer todo mundo, não se sentiam seguros quando tinham que andar pela cidade. Portanto, quando chegavam no centro, ou em outras regiões, não se sentiam tão seguros como se sentem em seus bairros.

É o medo do estranho, estar numa região que você está totalmente fora de sua zona de conforto, também é um problema que se conecta com a questão da mobilidade.

Eles relataram que ficam surpresos quando alguém fala que o bairro que vivem é perigoso. Visto que, como eles já conhecem e estão ambientados naquele lugar, para eles é muito tranquilo.

“Eu sinto bastante isso também em Poá, ou em regiões próximas a Poá que eu frequento, mas que são consideradas mais perigosas, como eu conheço vou em paz” Lorrana reflete sobre sua relação com o território que reside.

Por ser mulher…

Para Lorrana a questão das mulheres é muito difícil, ainda que ela tenha contado com muito apoio dos familiares, especialmente do pai, que sempre levava e buscava na estação, quando chegava muito tarde. “Às vezes, não chegava tão tarde e meu pai falava ‘me liga que estou esperando’. Mas, não é todo mundo que tem esse apoio, pois, os pais trabalham, tem suas demandas e também estão cansados. Logo, é uma estrutura. Voltar para casa sozinha a pé, dá medo, para as mulheres é um medo muito maior, pois, não é só o medo de ser assaltada, é o medo de uma violência gigantesca.”

“Porque muitas vezes somos invadidas, nossos espaços são invadidos”, completa Kika.

Mobilidade e ampliação de acessos para as periferias

Para Kika, “a questão de deslocamento pra gente que é da periferia é uma questão muito forte, que nos atravessa bastante, e atrapalha até o acesso a oportunidades melhores. Já que, para conseguir oportunidades melhores você sabe que vai ter que se deslocar muito, como moramos na periferia de cidades da região metropolita ficamos muito reféns do transporte público.”

Para Lorrana “a mobilidade urbana, para nós é muito mais difícil, é uma injustiça estrutural mesmo como o próprio nome da pesquisa diz. Muitas pessoas privilegiadas não conseguem enxergar isso, mas é um problema muito grande. O acesso é tudo, por isso, precisa ter mais investimento em saúde e transporte nas regiões mais periféricas. É necessário começar a enxergar isso, para melhorar a vida das pessoas, pois, precisa permitir que as pessoas consigam ir e vir, independente, de onde elas querem ir. Se a pessoa não quiser trabalhar no bairro dela, tudo bem. Que ela tenha a oportunidade e a opção de escolher trabalhar em outro lugar. Enfim, que todos possam ter as mesmas oportunidades.”

Para assistir o vídeo completo acesse: https://www.youtube.com/watch?v=FcpGg6KXbb4

Você encontra a pesquisa Injustiças Estruturais na cidade de São Paulo no link: https://drive.google.com/drive/folders/1b1e54U58_NXai4kGmE7fxAKuQPUiu5F0

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Organização sem fins lucrativos que tem como missão promover a construção compartilhada de conhecimento conectando pessoas para gerar transformação.